escrevi este conto antes da minha neta Luísa nascer, não sabia que ia ter outra neta nem como se chamaria... calhou bem!
Luísa e os Óricamos
Luísa gostava muito de correr, ia sempre para os trilhos da floresta, nunca ia
acompanhada, gostava de correr livremente, de sentir a natureza em seu redor,
gostava dos sons e do verde. Corria sem compromissos nem horas marcadas, decidia
ir e ia sozinha, quase sempre de madrugada, antes de todos, antes das
bicicletas e dos caminhantes que habitualmente frequentavam aquela zona.
Num
dia muito bonito mas com muito frio, ela entrou num trilho bastante fechado.
Na
primavera a floresta enche-se de folhas, flores e ramos novos, os arbustos e as árvores que no outono e no inverno ficam praticamente despidos, na primavera
ficam muito densos e farfalhudos, tapando quase por completo os trilhos que ela
conhecia.
Luísa não se intimidava, não tinha medo de nada, era muito corajosa e
atrevida.
Ora, acontece que na floresta há muitas coisas para além de árvores, arbustos e
flores, tem também muitos outros seres vivos.
A vida na natureza é muito
diversificada, tem de tudo um pouco: sardaniscas, sardões, salamandras, camaleões,
sapos e rãs. Esquilos, coelhos, ratos e ratazanas. Ouriços e até morcegos, tem
gatos e cães abandonados. Tem muito mais: tem pássaros, borboletas, moscas e
mosquitos. Tem abelhas, vespas e zangões. Tem libelinhas, gafanhotos e louva-a-deus
e, tudo convive harmoniosamente, sem a interferência dos humanos.
Luísa estava habituada a tudo isto, aos sons e movimentos de toda esta vida natural.
Agora para o que lhe apareceu pela frente, isso ela não estava preparada!
Luísa,
é bom que se diga, era uma rapariga com muita imaginação. Costumava contar ao
irmão mais novo histórias de animais imaginários e aventuras inventadas por ela
mesma mas, isto era algo que ela nunca, por mais que imaginasse, podia prever. Era
um ser muito estranho o que lhe barrou o caminho:
-
Quem és tu? Interpelou-a ele. Se é que se pode dizer ele, porque era uma
criatura tão estranha que era difícil distinguir se era ele ou ela. Era um
animal pequeno, tinha umas asas e uma cabeça de pássaro, contudo o corpo era o
de um cão, ou será que era um carneiro?Luísa ficou a olhar para aquela criatura sem perceber o que era e ainda por cima
falava.
-
Quem és tu? Perguntou de novo – Que fazes aqui no nosso mundo?
Ela
ainda muito ofegante e admirada, respondeu atabalhoadamente:
- Quem sou eu? E tu quem és? Ou antes, o que
és?
-
Sou o chefe dos Óricamos! Sou eu que mando nesta terra e tu que fazes aqui?
Quem te deu autorização para andares por estes caminhos? Vocês os humanos são
muito atrevidos e descuidados…
-
Corro, não viste que ia a correr? Eu gosto de correr e venho sempre para aqui,
já há muito tempo e nunca te tinha visto, de onde vieste? Que queres comigo
agora?
- Ultimamente temos patrulhado mais vezes a floresta, para prevenir os
acidentes, os incêndios e os crimes de uma maneira geral. Há muitas coisas a
acontecer por aqui e nós temos responsabilidades para com a natureza.
Luísa estava estupefacta, não conseguia tirar os olhos daquela criatura estranha, uma
mistura de pássaro, cão, carneiro e falava, isso era o mais estranho.
- Tudo bem mas diga-me uma coisa, porque me parou? Porque está a falar comigo?
Acha que sou uma criminosa?
-
Não! De todo, não, Nós conhecemos bem os criminosos! Só queremos garantir um
espaço para nós e neste momento quase estamos sem ele, as bicicletas e os
atletas têm feito tantos trilhos, que ocupam quase todo o território que antes
era só nosso, estamos a ficar bastante limitados.
-
Não sabia que havia criaturas assim! Disse Luísa mirando-o de cima a baixo – O
que és tu?
- Sou um Óricamo! Já te disse, nem toda a gente nos consegue ver. Somos mais ou menos
transparentes, só ficamos visíveis em situações limite e com pessoas de
confiança. Neste caso específico tu precisaste de mim, por isso me estás a
ver….
- Eu precisava de ti? Ela riu.
-
Porquê? Eu ia aqui muito bem a correr, vens tu interrompes-me e eu é que
precisava de ti? Ora essa!
Luísa entretanto ouviu outra voz.
-
Vamos embora antes que ela acorde!
-
Não! É perigoso deixa-la aqui sozinha, pode aparecer algum animal ou alguém que
se aproveite e lhe faça mal. Ela é uma das pessoas de confiança! É daquelas pessoas
que podemos e devemos ajudar. Temos que cuidar dela e tentar leva-la para perto
da estrada de modo a que alguém em quem nós confiamos a veja e a ajude.
Luísa virou-se e viu mais criaturas parecidas com a primeira, eram duas e atrás
estavam mais:
- Afinal que é que se passa? Não estou a entender, que querem de mim?
-
Estás a ver? Além do mais é mal-agradecida. Dizia outra criatura. Era muito difícil
descreve-la, tinha rosto de esquilo, mãos humanas, patas de coelho e o corpo
como o de um cão quando fica assente nas patas traseiras…
-
Não importa, pega aí no telemóvel dela e marca o 112. Não podemos correr o
risco de ela acordar.
Luísa estava furibunda! Estes coelhos, cães, pássaros, com rabos de serpente e cara
de esquilos, estavam a começar a passar das marcas, deu um grito.
– Parem de falar de mim como se eu não
estivesse aqui, ninguém mexe no telemóvel e deixem-me seguir!
Apesar
de ninguém estar a impedi-la de continuar a verdade é que Luísa não conseguia mexer-se. Por alguma razão estranha aqueles seres olhavam para ela com ar de
preocupação verdadeira. Ficou ali a olhar para eles, enquanto um deles que
tinha uma cabeça de cão, asas como um pássaro, um corpo, pequeno é verdade mas,
parecido com o de uma pessoa, tentava marcar o número de emergência. Quando
alguém atendeu do outro lado ele com a vós da Luísa só disse:
–
Ajudem-me, estou na floresta perto do cruzamento no acesso do lado sul. Depois
pôs o telemóvel na mão de Luísa e disse para os outros:
-
Pronto, já podemos ir! O
chefe dos Óricamos estava calmo!
-
Temos tempo! Não a podemos deixar aqui, não vamos deixa-la sozinha, pode
acontecer alguma coisa.
-
Explique-me o que se passa por favor, suplicou Luísa. Ela estava a começar a entender que alguma coisa tinha acontecido, alguma coisa da
qual não se apercebeu mas, o quê?
-
Caíste! Tropeçaste naquela raiz ali e bateste com a cabeça nesta pedra. Por
alguma razão perdeste os sentidos e ainda não recuperaste. Já estás há muito
tempo assim e isso para qualquer ser vivo não é nada bom e pode ser muito
grave. Além do mais está muito frio, por isso tivemos que intervir se não ainda
podias morrer aqui! Fica tranquila que o Tareco já está a tentar reanimar-te,
não podíamos deixar-te aqui sozinha e assim caída sem sentidos! Vai correr tudo
bem, vais ver.
Luísa não entendia nada! Estava ali de pé
junto daquelas criaturas, a falar com elas e elas diziam que estava caída sem
sentidos? Que situação mais estranha. O chefe dos Óricamos apontou com o
dedinho para um sítio atrás de si. Quando ela se virou viu-se a si própria
caída no chão inanimada e com um fio de sangue a sair de uma têmpora. Ficou
abismada debruçou-se sobre si própria e ficou ali a olhar para aquele pequeno
ser estranho, com cara e cabeça de esquilo mas com Patas e corpo de cão a fazer
exercícios em cima do seu peito e a fazer respiração pela sua boca, enquanto um
outro lhe tapava o nariz, era uma situação deveras embaraçosa.
O peso do pequeno ser não era suficiente para
fazer o peito baixar de modo a massajar o coração. O Chefe dos Óricamos saltou
para cima do peito de Luísa e chamou mais outros, que começaram a saltar todos
ao mesmo tempo, enquanto um deles fazia a contagem. Mais uma vez o menino com
cara e cabeça de esquilo lhe soprou pela boca enquanto o outro lhe tapava o
nariz.
De
súbito Luísa deixou de ver, ficou tudo escuro. Tentou mexer-se mas doía-lhe a cabeça. Tentou levantar-se mas não conseguiu! Olhou em volta não viu ninguém,
só se ouviam os pássaros e os barulhos normais da floresta, respirou fundo! Pelo
menos estava viva, mexeu os pés e as mãos, também não estava paralisada,
virou-se de lado e tentou erguer-se devagar. Ao fim de algum tempo e com esforço
conseguiu sentar-se, doía-lhe o peito mas de resto sentia-se bem. Tinha
um grande alto na cabeça junto à têmpora, levou a mão ao sítio e tinha sangue,
não era muito, não era grave. Depois
lembrou-se do telemóvel, onde estaria? Não o conseguiu encontrar na bolsa,
devia estar no chão perto do sitio onde estava a sua mão antes de se levantar.
Lá estava ele, ainda ligado para o 112. Afinal não tinha sonhado, tinha mesmo
acontecido tudo. Olhou em volta a ver se via as criaturas mas, não viu nada,
chamou.
- Óricamos! Óricamos! Onde estão vocês? Apareçam por favor, só quero agradecer,
nunca vou esquecer o que fizeram por mim, apareçam! Quero vê-los mais uma vez. Começou a ouvir o toque de uma ambulância. Dirigiu-se lentamente para a saída
da floresta quando viu dois paramédicos a avançar pelo trilho com uma maca.
- Bom dia menina, recebemos uma chamada de socorro foi você?
-
Parece que sim! Eu devo ter caído e perdi os sentidos mas, já passou descul…. Luísa caiu inanimada! Os paramédicos socorreram-na imediatamente e levaram-na para o hospital. Tinha um pequeno traumatismo craniano, quando acordou estava
numa sala toda branca, com um médico de bata também branca que olhava para ela
a sorrir, enquanto lhe pegava no pulso.
-
Já passou! Não se preocupe que não é nada grave. Disse ele muito simpático
-
Agora só tem que descansar.
-
Afinal o que foi que me aconteceu?
-
Deve ter caído e bateu com a cabeça, fez um pequeno traumatismo craniano. Já
fizemos todos os exames agora vamos aguardar para ver se está tudo bem. Se nas
próximas horas não se sentir enjoada ou vomitar é porque está tudo bem, de
qualquer maneira tem mesmo que repousar. Como se sente?
-
Muito confusa doutor, se não fossem aqueles animaizinhos estranhos, eu teria
morrido ali pois ninguém me iria encontrar.
-
Animais? O médico puxou uma cadeira e sentou-se à cabeceira de Luísa
– Que animais? Conte-me lá!
-
Os que chamaram o 112. Os que me fizeram a reanimação, que me salvaram a vida.
- Realmente, verificámos que alguém lhe fez a reanimação, tem umas nódoas negras
no peito mas, não foi o pessoal da ambulância?
-
Não doutor, quando a ambulância chegou eu já estava de pé, só que depois acho
que voltei a cair.
-
Então, conte lá do que se lembra! Disse o médico com muita calma. Luísa começou a relatar todos os acontecimentos, contou do especto dos
Óricamos, do telefonema para o 112, da reanimação, da chegada dos paramédicos,
sem nunca ser interrompida, o médico deixou-a falar à vontade, quando acabou
ele olhou para ela e com muita calma disse:
-
Muito bem! Acho que está com uma amnésia fantasiosa! Isso vai passar dentro de
um ou dois dias mas não se preocupe que é normal acontecer a pessoas que têm
traumatismo craniano. É uma glândula que existe na massa encefálica, que gera
imagens e que faz com que as pessoas sonhem acontecimentos estranhos, agora
descanse e tente dormir. Abriu um pouco mais do líquido que estava a correr por
um tubinho diretamente para a veia do braço de Luísa e saiu.
Acontece
que Luísa não era uma pessoa fácil de convencer. Ela sabia bem o que tinha visto e ouvido. Sabia que havia alguma coisa lá bem no meio da floresta e tinha
que tirar aquela história a limpo. Não era um médico com explicações sobre
glândulas e massas encefálicas que a iam convencer de que não tinha visto nada…
Por agora o melhor era ficar calada, para não pensarem que estava maluca.
No
dia seguinte, depois de uma noite descansada, quando acordou sentiu-se muito
bem apesar de se lembrar exactamente de tudo. Quando o médico chegou, cumprimentou-a e perguntou.
-
Então? Como se sente? Lembra de alguma coisa estranha que lhe tenha acontecido?
- Não! Que foi que aconteceu? Eu estou muito bem, só acho que já estou aqui há
séculos, acha que já me pode mandar embora?
-
Ainda não! Disse o médico. - Gostava de lhe fazer mais uns testes a ver se a
amnésia já passou. Diga-me cá ainda se lembra dos animais estranhos que viu na
floresta?
Luísa era uma rapariga muito esperta, olhou para o médico com os olhos muito
abertos e perguntou:
-
Quais animais estranhos? De que é que está a falar Sr. doutor?
-
De nada minha querida, de nada! Disse o médico.
-
Ainda bem que já está restabelecida e pronta para sair desta cama.
Na
semana seguinte Luísa foi de novo correr para a floresta como sempre fazia. Quando ia a passar perto da zona onde tinha caído, fingiu que tropeçava e
deitou-se no chão com a cara para baixo e ficou ali muito quieta. O tempo
passou e não aconteceu nada, esperou uns dez minutos e nada. Levantou-se e
voltou a correr por um outro trilho mais denso, onde havia um carvalho enorme e
umas pedras grandes. Fez de novo a simulação de queda e voltou a ficar muito
quieta com a cara para baixo, como se estivesse caída e inanimada… De súbito ouviu um restolhar de folhas e ficou atenta, algo lhe tocou na cara.
Ela não se mexeu, depois ouviu uma voz:
-
Está desmaiada!
-
Não pode ser! Disse outra voz
–
Não outra vez, que falta de cuidado tem esta rapariga. A voz que falou de novo
era bem conhecida, falou alto e claro que falou para ela:
-
Deixa-te de fingimentos, as coisas não funcionam assim, faz favor de te
levantares! Luiza
deu um salto e gritou:
-
Eu sabia! Eu sabia!
-
És muito atrevida! Disse o chefe dos Óricamos.
-
Eu sabia que não era amnésia, nem invenção minha! Eu tinha a certeza que vocês
existiam e que me tinham salvado a vida.
-
Cala-te! Gritou-lhe ele – Não vês que ninguém pode saber da nossa existência?
Será que não percebes que as pessoas não estão preparadas para nos verem? Nós
sempre existimos e nunca, nunca nos demos a conhecer, os seres humanos não iam
entender.
- Mas eu vi-vos! Disse Luísa – Eu vi-vos e vocês ajudaram-me e salvaram a minha
vida, como vamos fazer para eu esquecer? Eu não quero esquece-los, eu adorei
conhece-los! Vocês salvaram a minha vida, se não fossem vocês eu poderia estar
morta a esta hora, eu preciso agradecer e dizer a toda a gente os seres
maravilhosos que vocês são!
Luísa quase chorou, ficou emocionada e desolada, então não poderia nunca falar disto?
Era muito injusto para com estas criaturas maravilhosas, não podia falar e
contar a toda a gente o que lhe aconteceu? A maneira como a ajudaram?… Então
o chefe dos Óricamos cheio de calma falou de um jeito e com uma voz estranha
que fez com que Luísa entendesse:
-
A literatura, a arte, o cinema, o teatro, estão cheias de histórias sobre nós,
sobre criaturas maravilhosas como tu nos chamas. Mas são histórias lindas de
fantasia, com duendes, fadas, bruxas, e tantos, tantas outras personagens. Histórias
que tu própria já deves ter lido. Então podes sempre escrever, contar histórias
sobre nós mas, sempre como num sonho, numa amnésia fantasiosa, ou o que
quiseres chamar-lhe. Só que nunca vamos aparecer ou mostrar-nos, porque nunca o
fizemos nem nunca o faremos e se te pões para aí a falar de nós a toda a gente,
ainda dizem que estás louca e metem-te numa instituição para gente maluca,
pensa bem!
Luísa ficou ali muito tempo a conversar com aquelas criaturas estranhas. Ficou a
conhecer melhor cada um deles. Ficou a saber que já na Grécia Antiga se
escreveu sobre eles, que no Egipto também eles ajudaram e acabaram por ficar
nas histórias. O mundo está cheio de figuras mitológicas, desde de tempos imemoriais, só que sempre como imaginação dos homens e nunca como uma coisa
real. Também ela agora pertencia a esse mundo, como o da fénix, do minotauro,
dos dragões, que sempre são apresentados como gigantes lutadores e não como
criaturas frágeis.
Tudo
na natureza é importante! Tudo tem o seu lugar e a sua função, seja animal ou
vegetal, nada é deixado ao acaso por mais estranho que pareça. Se existe é
porque faz parte de um todo, que é o planeta ou o próprio universo.
Cabe
a nós humanos, seres pensantes, cuidar e zelar pela natureza porque fazemos
parte dela e se cuidarmos bem da natureza ela cuidará bem de nós.
Luísa continuou a ir correr para a floresta como sempre fez. Continuou a ser como
sempre foi, cuidadosa. Apanhava lixo se houvesse e levava-o para os caixotes,
que havia espalhados por todo o lado. Foi assim durante anos e anos e anos …
Olá.
ResponderEliminarGostei!
Hummm! Suspeito que estamos perante um futuro brilhante como escritora de contos infantis. Vou estar atento e obrigado pela partilha.
Cumps
António A.
Horta de Codeçais
Obrigada! estava a ver que ninguém lia...
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